O “sensus
pulchrum”: chave do relacionamento com Deus
Irmã
Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP
A emoção
estética faz com que o espírito humano se abra para a transcendência. O
maravilhamento ante a beleza serve, muitas vezes, como pedestal para a ação da
graça, transformando repentinamente numa experiência mística sobrenatural a luz
que brilha no plano natural.
Definir o
que seja a beleza é uma intricada tarefa. Afinal, como diz o adágio popular,
“gosto não se discute”… E se isto sempre foi difícil, mais ainda resulta hoje,
num mundo globalizado que se movimenta em torno da máxima informação no mínimo
de espaço e de tempo.
Com efeito,
agitada por constantes e profundas renovações tecnológicas, nossa sociedade
mundializou a cultura, mas à custa de tornar onipresente uma estética
irrefletida, escrava dos impulsos e das sensações passageiras, vazia de
significado, quando não extravagante.
Corre-se o
risco, afirma Bento XVI, de considerar a vida como uma mera sucessão de fatos e
experiências, em detrimento da busca da verdade, do bem e da beleza, que nos
proporcionam a felicidade e a alegria. Porém, os homens não podem ser vistos
“como meros consumidores num mercado de possibilidades indiferenciadas, onde a
escolha em si mesma se torna o bem, a novidade se contrabandeia como beleza e a
experiência subjetiva suplanta a verdade”.1
Portanto,
hoje mais do que nunca é oportuno perguntar: é a beleza uma simples questão de
gosto? Devemos renunciar definitivamente a dar-lhe um sentido objetivo e passar
a analisá-la sob o prisma de uma psicologia individualista? Até que ponto seu
conceito é influenciado pela política ou pela economia, com seus peculiares
interesses de mercado? Altera-se sua essência com a voragem das modas
cambiantes e contraditórias, tão própria de uma sociedade de consumo? Ou há uma
maior profundidade filosófica nesta questão, que envolve a existência humana e
sua finalidade, e a torna objetiva?
Nossa
sociedade parece ter relegado ao esquecimento os valores transcendentais2 —
verdade, bem e beleza —, gravados por Deus no fundo da alma do homem. Ora,
significa isso ter ele perdido definitivamente a disposição natural de admirar,
de buscar a beleza? Cremos que não. Parece-nos, pelo contrário, que a saturação
informativa e sensorial do nosso dia a dia torna a alma dos nossos
contemporâneos mais sequiosa do que nunca desses valores.
Uma
intuição do belo e do bem
Conta Mons.
João Scognamiglio Clá Dias que, há alguns anos, estando em Paris, observou uma
cena muito expressiva, apesar de sua aparência corriqueira: duas meninas
brincavam num jardim público, correndo de um lado para outro. Era visível serem
irmãs, uma maiorzinha, com seus sete anos, e outra menor, quiçá com apenas
três. Em determinado momento, a menor começou a correr sobre um dos canteiros
floridos, onde era proibido pisar, e sua irmã admoestou-a: “Madeleine, ce n’est
pas beau!” — “Madalena, isto não é belo!”. Foi o suficiente para a pequena
parar e dar meia volta, corada e desconcertada.3
O que fez
essa menina, ainda sem idade para ter o pleno uso da razão, ficar envergonhada
por haver realizado um ato que não era belo? Por que sua irmã não lhe disse:
“Madeleine, ce n’est pas bien!” — “Madalena, isto não está bem”? Como sabe a
criança que o mal é feio e errado? Por que, já desde a aurora de sua existência
nesta Terra, a criatura racional relaciona o bem com a beleza? É a criança um
pequeno “filósofo”, que sabe fazer uso dos conceitos transcendentais?
Tal exemplo
demonstra possuir o homem intuições que fazem transparecer a riqueza de uma
realidade talvez pouco notada. E descortina o amplo panorama da natureza
humana, com suas capacidades e potências, tocando num ponto chave do existir do
homem: sua transcendentalidade e seu relacionamento com as realidades
metafísico-espirituais, ou seja, a abertura de sua alma para além da matéria
visível.
Os
instintos espirituais
Com efeito,
existem no ser do homem — por ser este uma criatura inteligente — “instintos
espirituais” que se manifestam justamente quando ele começa a ter conhecimento
de que existe, pela noção de seu próprio ser e do ser de tudo aquilo com o que
entra em contato.4 Esta noção, sumamente substanciosa, é como o alimento
próprio de sua inteligência, pois é o que lhe permite conhecer todas as coisas,
garantindo-lhe a sanidade mental. Se suas apreensões não fossem verdadeiras e
reais, enlouqueceria.
Este
conhecimento começa a se pôr em evidência quando a criança abre os olhos para a
luz, distinguindo seu ser do ser de sua mãe, mas dela dependente; percebendo
que o chocalho é real e verdadeiro, pois escuta seu ruído; que o leite lhe
satisfaz a sensação de fome, sendo por isso bom; que a luz e as cores são
atraentes e belas, entretendo-a e fazendo com que ela queira conhecer e aprender
mais e mais. Tem ela uma intuição de que sempre há algo mais para conhecer,
para além daquela realidade que vê e apreende experimentalmente, ainda sem
compreender conceitualmente qualquer expressão abstrata e formal. Em nenhuma
época se aprende tanto como quando se é criança, e esta não dissocia o
entreter-se do compreender. “Neste nosso mundo de seres ao qual ela acaba de
aportar, o ser do homem desabrocha e exclama por consonância com a verdade,
bondade e beleza dos seres que observa”.5
Sendo prévio
a qualquer raciocínio com princípios claros e estabelecidos, esse conhecimento
do próprio ser e do ser inteligível e verdadeiro das coisas sensíveis é,
todavia, uma apreensão intelectual ainda confusa, sem explicitações racionais,
e se dá na inteligência espontânea, chamada habitualmente de senso comum. Ela
admite verdades e princípios a respeito dos quais o homem não se equivoca, tais
como o de identidade e seu corolário, o de contradição — cada ser é o que é e
não pode ser outra coisa; o de causalidade — todo efeito supõe uma causa; ou o
de finalidade — todo agente obra por fim, que é o seu próprio bem.
Esta
intuição, chamada sindérese, é um hábito da razão com o qual os homens nascem,
não o adquirem pela repetição dos atos 6 ou por um dom divinamente infuso. Ela
permite conhecer estes primeiros princípios, bem como perceber as propriedades
transcendentais de todos os entes. Entretanto, como os demais atos
intelectuais, este hábito exige o desenvolvimento da inteligência. Poderia ser
chamado de protoconsciência, como um selo de lógica, verdade, bem e beleza
presente na alma humana, pois impulsiona ao bem, censurando o mal,
impulsionando, por conseguinte, à verdade e à beleza, e admoestando seus
contrários ou opostos.
O papel dos
sentidos na percepção da beleza
São Tomás
admite o argumento aristotélico de que nada existe no intelecto sem antes haver
passado pelos sentidos, considerando-o apenas na ordem da natureza e não da
graça, pois esta última não está subjugada às leis naturais. Deste modo, afirma
ele que, sendo o homem composto de matéria e espírito, “todo conhecimento tem
sua origem nos sentidos”7, pois os dados da experiência sensível tornam-se
inteligíveis pela ação do intelecto, que os abstrai e eleva à condição de
realidades imateriais e espirituais.
Dentre os
sentidos externos, há dois que são superiores, a visão e a audição. Segundo o
Angélico, é verdade que se diz sons e imagens belas, mas não perfumes, sabores
ou texturas belas8. Esses dois sentidos são, portanto, os que abrem para a razão
a via de acesso ao belo, que nele se deleita, pois o belo, na concepção tomista
é “id quod visum placet — aquilo que, visto, agrada”9.
Não
obstante, a beleza não se restringe à percepção sensorial, sendo percebida pelo
homem, também, em todas as suas dimensões espirituais, uma vez que esta
percepção é intrínseca a seu próprio ser. Os sentidos externos são instrumentos
para a percepção sensível, porém, é o intelecto que, por assim dizer, “lê” o
belo das coisas, em razão de sua verdade e bem.
Aparece claramente,
então, a transcendentalidade da beleza, que tem algo em comum com a verdade e a
bondade, pois manifesta a relação da coisa bela com o espírito, despertando um
prazer espiritual, ainda que seja na contemplação da beleza sensível, pois só é
possível captar a beleza, enquanto tal, espiritualmente. Por este motivo, não é
raro, diante de algo muito belo, uma pessoa ficar sem ter o que dizer. Ela
compreende e capta a mensagem, nem tendo necessidade do conceito estético. E é
pela mesma razão que, em sentido oposto, a pequena Madeleine identificou uma
ação de si mesma má e errada, por romper com as regras estabelecidas, como
feia.
O “sensus
pulchrum”
É por isso
que há no ser humano uma espécie de atração, um magnetismo pela beleza, já
manifesto na mais tenra infância, pelo qual a criança busca as coisas bonitas
nos seus primeiros contatos com estas. É clássico o exemplo das bolinhas de
cores diferentes que são apresentadas a um bebê para com elas brincar. Ele vai
escolher primeiro a de cor mais viva e atraente. Só depois se interessará pelas
outras. Assim, vemos que esta espécie de instinto do belo é o ponto de partida
para encontrar, de modo quase subconsciente, a verdade e o bem.
Isso porque
a beleza não é senão o esplendor de todos os transcendentais reunidos. Ou, como
afirma Vilela, é “o ‘splendor veri’ dos platônicos, o ‘splendor ordinis’ de
Santo Agostinho; e mais: é dizer que ela é ‘splendor boni’ e ‘splendor
perfectionis’. […] É o resplendor do ser, do ser que é um, através de sua
perfeição, de sua verdade e de sua bondade resplandecentes, enquanto apreendido
esse resplendor, pela inteligência, e enquanto essa apreensão é fonte de
alegria para a vontade. E para o homem todo, já que no homem as coisas entram
no espírito pelos sentidos. Daí ser a beleza tão envolvente!”10.
Von
Balthasar corrobora inteiramente tal pensamento: “Nossa palavra inicial se
chama beleza. A beleza, última palavra à qual pode chegar o intelecto
reflexivo, já que é a auréola de resplendor indelével que rodeia a estrela da
verdade e do bem e sua indissociável união”11.
Mons. João
faz uma interessante analogia a tal respeito: assim como as plantas possuem o
instinto da procura do sol — o heliotropismo —, a criança tem “um agudo senso
do maravilhoso que a atrai ao belo, devido ao qual ela olha com indiferença
aquilo que não satisfaça seu desejo neste sentido. Essa espécie de
‘kaloi-tropismo’ [atração pelo belo] indica que, ao lado dos diversos
transcendentais, o pulchrum tem um papel absolutamente insubstituível para a
conservação e o aperfeiçoamento do primeiro olhar sobre o ser”12.
A essa
espécie de instinto espiritual da beleza chamamos de “sensus pulchrum”.
A percepção
do belo como via para o relacionamento com Deus
É possível
deduzir, por todo o exposto, que a beleza é conatural ao homem, assim como ele
é conatural ao bem, sua finalidade última. É por esse instinto da alma — o
sensus pulchrum — que ele percebe o perfeito, o proporcionado e o luminoso. E
no conhecimento de todas as coisas, encontra como que “degraus” que o elevam
mais nessa “escada” da busca do bem e da beleza — e também da verdade —
compreendendo que deve haver um arquétipo de tudo: a Verdade, o Bem e a Beleza
em substância. A cada passo, seu espírito se deleita e se aquieta na
contemplação, pois, afirma São Tomás, “pertence à essência do belo que, com sua
vista ou conhecimento, se aquiete o apetite”13.
Contudo,
tal apetite nunca se sente plenamente satisfeito nesta Terra. Provido de
inteligência e vontade, o homem tem necessidade de conhecer e amar com sede de
infinito, pois, dentro do limite da matéria, seu espírito busca o ilimitado. O
limite repugna ao homem; à natureza humana apetece a plenitude.
Plinio
Corrêa de Oliveira recorre a uma metáfora muito interessante para explicar este
fenômeno, utilizando-se da imagem do monte Fuji, no Japão, o qual se eleva de
forma imponente numa paisagem encantadora. No entanto, por ser de origem
vulcânica, à sua forma cônica, regular e perfeita, falta o vértice. Vendo essa
imagem de cone truncado, tem-se a tendência de logo imaginar o pico que o
completaria. Ele fazia a analogia desta tendência com a busca da perfeição no
homem: está sempre à procura dos “cones do Fujiyama”, não só de si mesmo, mas
também de todas as coisas, algo que os aperfeiçoe e assemelhe à Perfeição Absoluta,
que é Deus, dando-lhe a clave da impostação de sua alma nesta vida terrena.14
Muitas
vezes, entretanto, preso às realidades concretas e temporais, busca o homem nas
criaturas esse vértice que lhe falta, sem êxito, encontrando apenas a
frustração, pois as coisas deste mundo tão somente fazem parte de um conjunto
cuja cúspide se encontra no Céu, onde está Quem lhe poderá saciar a sede de
infinito. Tal é a admoestação que faz o livro da Sabedoria: “Se tomaram essas
coisas por deuses, encantados por sua beleza, saibam, então, quanto seu Senhor
prevalece sobre elas, porque é o criador da beleza que fez estas coisas. Se o
que os impressionou é a sua força e o seu poder, que eles compreendam, por meio
delas, que seu criador é mais forte; pois é a partir da grandeza e da beleza
das criaturas que, por analogia, se conhece o seu autor” (Sb 13, 3-5).
basilica-sao-pedro1-horzPortanto,
a percepção da beleza, o encanto e o maravilhamento com algo belo levam a
perceber a Deus, que não é senão o Autor de toda a beleza, sendo Ele próprio a
Beleza em si mesma. Dessa maneira, na contemplação das belezas da grandeza do
mar ou do silêncio das montanhas, do céu estrelado, de uma paisagem deserta ou
de uma fonte, dá-se um conhecimento experimental, movendo os sentidos externos
e internos, num autêntico processo estético e místico: “Não custa trabalho ver
em tudo isso a caligrafia do Criador”15.
Santo
Agostinho, o grande cantor da beleza, também afirma falarem as coisas criadas,
em si mesmas, de Deus: a beleza das coisas as transcende e revela o Criador,
pois, se são belas as coisas que fez, quanto mais belo será quem as fez16. E
esta é uma das principais inquietudes dos homens: pela “obra de arte” conhecer
o “Artista”. De grau em grau, pela admiração e maravilhamento, a razão vai
galgando a montanha do concreto em direção a seu “cone”, o imponderável,
seguindo as pegadas desse Artista, para tentar penetrar em seus mistérios e com
Ele relacionar-se.
Maravilhar-se:
um ato de religião
Desse modo,
podemos afirmar com Soto Posada que o “gozo estético não é meramente sensível
ou inteligível, mas tem um plano moral e religioso”17. O agrado — o placet que
São Tomás afirma provocar no ser do homem o conhecimento da beleza — se dá
porque “como todo ser participa do ser de Deus, gozar de sua beleza é gozar de
Deus: a experiência estética se faz fruição teológica e mística”18. A
experiência estética, a admiração, o assombro diante da beleza que placet
torna-se, então, uma ponte para a espiritualidade, pois a sede de infinito do
homem só será saciada no encontro com Deus. Maravilhar-se é, pois, um ato de
religião. Nas imortais e belas palavras de Santo Agostinho: “Tu nos fizeste
para Ti, Senhor, e irrequieto está nosso coração enquanto em Ti não
repousar”19.
Esta
concepção se fez sentir de modo especial nas artes medievais, que eram feitas
de maneira a maravilhar o homem e ajudá-lo a entrar em contato com Deus.
Umberto Eco, analisando a arte e a estética na Idade Média — na qual foram
desenvolvidos os problemas estéticos a partir da Antiguidade Clássica, sob um
prisma cristão —, é da opinião de que esse significado novo dado ao tema do
belo só se tornou possível porque esta concepção de beleza cristã foi
introduzida no sentimento do homem, do mundo e da divindade. O filósofo
medieval não falava de todos esses conceitos de modo abstrato, mas o remetia a
coisas concretas e seu campo de interesse estético era muito mais amplo que o
dos dias atuais, porque estava estimulado pela consciência da beleza como dado
metafísico. O homem moderno superestima as artes plásticas, porque perdeu esse
sentido de beleza inteligível. Para os medievais, a beleza inteligível
constituía uma realidade moral e psicológica, e a cultura da época ficaria
insuficientemente iluminada se não tomasse em conta este fator.20
A
consequência de tal mentalidade medieval foi que se degustava o belo com a
finalidade de amar a Deus, por isso havia uma inclinação — secundária, no
sentido de que era em função desse amor —, um “amor ornamenti, às igrejas
suntuosas, ao belo canto e à bela música”21 , sem desprezar a beleza moral,
também “sensível”, presente nos ascetas e místicos.
O flash:
clave para alcançar a santidade
Não cabe
dúvida, então, de que a emoção estética, a admiração — o sensus pulchrum em
ação — abre o espírito humano para a luz da transcendência. Por isso, muitas
vezes, esse maravilhamento pode ser uma espécie de pedestal para a ação de uma
graça, uma luz que brilha repentinamente, e a alma sai do plano natural para
ter uma experiência mística sobrenatural.
É ainda
Plinio Corrêa de Oliveira quem definia essa contemplação ou experiência mística
como sendo um flash, uma graça que parte do Espírito Santo, iluminando a alma,
como um maravilhamento, à semelhança da emoção estética22. O motivo da escolha
da palavra flash, segundo ele, é porque “assim como na hora de tirar uma
fotografia é produzida pela máquina uma luz intensa e rápida, cujo repentino
clarão permite fixar a imagem e sem o qual ela não se fixaria, assim também
essa graça atua à maneira de um flash, emitindo uma luz intensa. Essa luz faz a
‘objetiva’ de nossa alma ver e gravar aspectos que normalmente não veria ou não
gravaria. Essa figura, tirada de um aspecto técnico da vida contemporânea,
ilustra didaticamente este fenômeno sobrenatural”23.
Pode-se
dizer, analogamente, que a percepção estética também seria como um flash que
ilumina a sensibilidade e a inteligência, maravilhando, agradando — “id quod
visum placet” — e aquietando o apetite instintivo do ser humano. O sensus
pulchrum, sendo o motor deste assombro, do maravilhamento, do flash, torna-se a
chave para abrir as portas do ser do homem para seu encontro e relacionamento
com Deus, a quem o homem busca por instinto espiritual e conaturalidade, uma
vez que busca a Verdade, o Bem e a Beleza na plenitude, encontrando a
santidade.
A beleza
salvará o mundo?
Tem a
beleza, portanto, a capacidade de abrir a mente e o coração do homem para o
encontro com Deus, sua salvação, a quem procura quiçá sem saber. A partir da
experiência do encontro com o belo, por meio desse assombro, desse
maravilhamento, desse flash, abre-se para a humanidade uma Via Pulchritudinis,
a qual “não se pode reduzir a um confronto filosófico. Porém, a observação do
metafísico ajuda a compreender por que a beleza é uma via real para conduzir a
Deus”24. É uma forma superior de conhecimento, que “desperta o homem para a
real estatura da verdade”, a verdade bela, “a verdade que redime”, que em
Cristo iluminou “o mundo de beleza criado pela fé”, e na face dos santos “sua
própria luz se torna visível”25, pois a famosa beleza que salva, de Dostoievski,
não é outra senão a beleza redentora do Salvador.
Apesar
dessa linguagem atualmente apresentar um esteticismo globalizado e afastado da
verdadeira ideia de beleza — como vimos no início destas linhas —, o sensus
pulchrum continua latente nos corações dos homens e é através dele que se abre
a possibilidade de seu resgate e de sua salvação, para por meio dele
encontrar-se com Deus.
Com
palavras cheias de esperança, assegura Mons. João: “O homem de hoje não perdeu
a capacidade de admirar, por mais que a sociedade lhe faça muitos outros
convites. É preciso proporcionar-lhe ocasiões para, maravilhando-se, discernir
nas coisas aquilo que elas têm de belo, de bom e de verdadeiro, ou sua
ausência, e com isto poder voltar-se para o essencial: Deus”26.
Fica,
portanto, aqui um convite aos nossos leitores: que eles possam ser testemunhos
vivos de toda a explanação doutrinária aqui desenvolvida, e não façam calar seu
sensus pulchrum, maravilhando-se e abrindo-se para esta transcendência e para o
flash — pois só a espiritualidade da beleza, chamada kalós pelos gregos, pode
fazer o homem reencontrar-se com a presença da Beleza Divina —, tornando-se
teokalófaros, na feliz expressão de Arboleda Mora. Diz este que quem porta algo
é porque possui esse algo. Assim, “alguns dos primeiros monges da Igreja antiga
eram conhecidos pela santidade de sua vida e por isso o povo os denominava
teóforos — portadores de Deus. Quem expressa através de sua vida a beleza de
Deus, bem pode ser chamado teokalóforo — portador da beleza de Deus”27. Quem
encontra e ama, possui o que ama, e deve ser, portanto, portador do que possui.
É neste
sentido que podemos definitivamente terminar com Dostoievski, com toda
propriedade: “a beleza salvará o mundo”! Pois, se “a alma maravilhável é uma
alma maravilhosa, capaz de fazer maravilhas”28, com almas maravilháveis e
maravilhosas, que se relacionam e se unem a Deus, reconhecendo a maravilha da
criação e da redenção, maravilhas podem ser feitas neste mundo e a face da
Terra pode ser renovada.
Publicado em 23 fevereiro, 2012 por ifte
1BENTO
XVI. Welcoming Celebration by the Young People Address of His Holiness Benedict
XVI. Barangaroo, Sydney
Harbour, 17/07/2008.
2Todo ente
possui algumas qualidades inerentes ao seu próprio ser, que são suas
propriedades intrínsecas, as quais vão além, transcendem a ordem categorial. E,
como tais, acrescentam algo ao conhecimento do ente, estando sempre presentes
nele e intimamente ligadas entre si. São chamadas, por isso, de transcendentais
e costuma-se reduzi-las a quatro: unum, verum, bonum, pulchrum — a unidade, a
verdade, o bem e a beleza. Sobre este tema, ver FORMENT, Eudaldo. Id a Tomás:
Principios fundamentales del pensamiento de Santo Tomás. 2.ed. Pamplona:
Fundación Gratis Date, 2005, p.66-74.
3Cf. CLÁ
DIAS, EP, João Scognamiglio. La “primera mirada” del conocimiento y la
educación: un estudio de casos. Tese de Mestrado em Psicologia. Bogotá:
Universidade Católica de Colômbia (UCC). Faculdade de Psicologia, 2009, p.112.
4Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.5, a.2.
5CLÁ DIAS,
EP, João Scognamiglio. O primeiro olhar da inteligência. In: Lumen Veritatis.
São Paulo. Ano III. N.12 (Jul.- Set., 2010); p.14.
6Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.79, a.12.
7Idem, I,
q.1, a.9.
8Cf. Idem,
I-II, q.27, a.1, ad.3.
9Idem, I,
q.5, a.4, ad.1.
10VILELA.
Orlando O. Alma criadora de símbolos. 2.ed. Belo Horizonte: Diálogo, 1954,
p.100-101.
11VON
BALTHASAR, Hans Urs. Gloria: Una estética teológica. La percepción de la forma.
Madrid: Encuentro, 1985, p.22.
12CLÁ DIAS,
La “primera mirada” del conocimiento y la educación: un estudio de casos, op.
cit., p.110.
13SÃO TOMÁS
DE AQUINO, op. cit., I-II, q.27, a.1, ad.3.
14Cf.
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Contemplar o “cone do Fujiyama” — ver as coisas na
sua ordem ideal paradisíaca: Palestra. São Paulo: 10 nov. 1989.
15VON
BALTHASAR, Hans Urs. El problema de Dios en el hombre actual. 2.ed. Madrid:
Castilla, 1966, p.139.
16Cf. SANTO
AGOSTINHO. Sermo CXLI, c.2, n.2: ML 38, 776; Enarratio in Psalmo CXLVIII, n.15:
ML 36, 1947.
17SOTO
POSADA, Gonzalo. La estética medieval. In: Cuestiones Teológicas y Filosóficas.
Medellín. UPB. N.43-44 (1989); p.171.
18SOTO
POSADA, Gonzalo. El arte y el artista en la Baja Edad Media. In: Cuestiones Teológicas. Medellín.
UPB. v.XXXV, N.83 (Jan.-Jun., 2008); p.136.
19SANTO
AGOSTINHO. Confessionum. L.I, c.1, n.1: ML 32, 661.
20Cf. ECO,
Umberto. Arte y belleza en la estética medieval. 2.ed. Barcelona: Lumen, 1999,
p.13-14.
21Idem,
p.15.
22Cf.
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A fidelidade ao alcandorado: Palestra. São Paulo,
16 jun. 1978.
23CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. O “flash”, o que é?: Conferência. São Paulo: 15 maio 1973.
24PONTIFÍCIO
CONSELHO DA CULTURA. Concluding
Document of the Plenary Assembly – 27-28 March 2006 – The Via pulchritudinis.
Beauty as a Way for Evangelisation and Dialogue. 2, 2.2. In: Culture e Fede. Civitas Vaticana: Pontificium Consilium
de Cultura, 2006, v.XIV/2, p.121.
25RATZINGER,
Joseph. A beleza e a verdade de Cristo. In: Communio. Revista Internacional de
Teologia e Cultura. v.XXVII, N.4 (Out.-Dez., 2008); p.920; 924.
26CLÁ DIAS,
EP, João Scognamiglio. Beleza e Nova Evangelização. In: Lumen Veritatis. São
Paulo. Ano IV. N.14 (Jan.-Mar., 2011); p.25.
27ARBOLEDA
MORA, Carlos Ángel. Um carisma encantador. Os Arautos do Evangelho como
teokalófaros. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.99 (Mar., 2010); p.36.
28CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. A admiração é a nossa estrela de Belém: Palestra. São Paulo,
13 maio 1988.